Brockwood Park School
A Brockwood Park School fica no meio de uma região rural em Hempshire, entre Petersfield e Winchester, duas pequenas cidades a 100km de Londres. É uma escola para adolescentes, algo como o ensino médio no Brasil. Seu fundador, J. Krishnamurti, tem uma história curiosa: bem nascido na Índia foi criado com tudo de bom e do melhor, pois, de acordo com certas crenças religiosas, acreditava-se que ele era um novo messias. Esse esforço da alta classe indiana envolveu enviá-lo para estudar na Inglaterra e mais ou menos nesse período Krishnamurti assume que não, ele não era nenhuma espécie de messias.
Mesmo assim, depois de tanto estudo e reflexão, ele era de fato um filósofo muito erudito para sua época, meados do século XX. Conhecia tradições filosóficas e religiosas, ocidentais e orientais. Com essa bagagem toda ele se torna um pensador inspirador, apaixonado por viagens e por conversas nas quais investigava questões sobre a vida, sobre a busca da verdade, sobre bem-estar e sobre aprendizagem. Ele dizia que preferia a conversa à palestra, e isso tem tudo a ver com a sua visão sobre o que é a verdade: a verdade não é algo externo, algo que temos que buscar acumulando conhecimentos trazidos por professores e livros. A verdade, segundo ele, está dentro de cada um de nós, e o processo de aprendizagem tem que dar suporte para que cada um descubra seus caminhos para desvendá-la.
O dia a dia na Brockwood
Poderíamos falar que na Brockwood a livre interação acontece com algumas definições de rotina, mas isso pode parecer muito abstrato. Então vamos a exemplos práticos: todos os dias de manhã eles limpam a escola. Eles todos: do estudante ao diretor. A escola não tem faxineira, então eles cuidam de tudo. E pode ser que o estudante vá lavar o banheiro com o diretor geral da escola, ou que vá descascar batatas com seu professor favorito. E descascar batatas, no caso, é no sentido literal: toda a comida é preparada na escola, tudo vegano e produzido localmente (alguns ingredientes, inclusive, produzidos pela comunidade da escola, ali no sítio onde é a escola mesmo).
Então existe essa agenda com alguns horários de atividades (limpeza, refeições, blocos de horários reservados para aulas etc.), mas existe também uma outra agenda bem mais flexível para as aulas: a cada início de semestre todos podem frequentar as aulas que quiserem e, de acordo com os interessados em cada aula, eles acham um horário que todos possam participar das atividades dessa aula durante o restante do semestre. Os estudantes não são obrigados a cursar nenhuma disciplina específica, eles mesmo escolhem o que estudar, e, de acordo com o que os professores podem oferecer, podem criar novas áreas de estudo, novas aulas, novos enfoques etc. Na verdade esses “grupos de estudos” formados a partir da vontade e do interesse dos estudantes é o que chamamos de aula na Brockwood. E tudo isso (horários, aulas, rotina) é abertamente discutido a partir dos estudantes (ou seja: não é somente discutido com os estudantes, mas a partir deles, dos interesses dos estudantes). Na nossa visita eles mesmo (estudantes) nos contaram que mudaram um pouco a estrutura das aulas para terem mais tempo para explorar por conta própria os conteúdos que estão estudando, e usar o tempo com os professores mais como um porto seguro (do que como guias que revelariam o caminho a ser percorrido).
Aliás, essa mudança recente nos foi contada de uma forma super inusitada depois de várias horas com Ewan, um estudante, francês, de 13 anos, que nos mostrou todas as dependências da escola. Foram horas deliciosas nas quais o bombardeamos com diversas perguntas. Mas o Cuducos ficou intrigado: em momento algum algo negativo foi dito, mesmo que indireta ou sutilmente. Ao final do tour, então, ele resolveu verificar com Ewan se era isso mesmo: “E se você pudesse mudar alguma coisa na escola, o que seria?” A resposta veio mais no olhar, do que nas palavras. Os olhos de Ewan escancaravam um desdém pela pergunta. A resposta, em palavras, veio mais ou menos da seguinte forma (depois de longos segundos pensativos, ainda incrédulo com a imbecilidade da pergunta): “Não sei… aqui o que a gente não gosta, a gente conversa e muda…”
Existem coisas fixas e pré-definidas de acordo com as conversas e discussões dos próprios estudantes. Eles escolhem como definir e fixar a agenda e as aulas deles. Se algo está ruim, se não está agradando, conversam e mudam – simples assim. E, claro, esses momentos de conversa de todos com todos é um dos itens mais importantes da rotina menos flexível: é uma atividade diária, que abre a manhã, e que conta também com momentos mais introspectivos, como meditação, por exemplo.
Por curiosidade, ainda nesse tópico: todos os funcionários da escola (do diretor geral ao zelador, passando por todos os professores) ganham o mesmo salário. E é o salário mínimo do Reino Unido. E isso faz parte do ideal de abertura e igualdade deles, além de ajudar a viabilizar financeiramente a escola.
Aprendizagem para a vida
Dessa forma, o ambiente na Brockwood se desenvolve com base na livre interação, entre atividades e conversações abertas, livres, espontâneas. Existem apenas alguma estrutura para dar um ritmo à rotina dos estudantes, mas no geral os cerca de 80 adolescentes que moram e estudam no sítio onde fica a escola são livres para escolher o que querem estudar. E se alguém pensar que um grupo de adolescentes morando num sítio tenderia à bagunça, ao futebol, ao videogame, nunca estaria tão enganado. Prova disso é que o pequeno laboratório de informática da escola, com uma dezena de computadores, nunca fica lotado. Mas nas nossas 36h de estada vimos estudantes estudando, por opção, economia, moda, história da arte, biologia, física…
Comunidade
Com essa diversidade toda, todo mundo na Brockwood Park School valoriza muito o senso de comunidade, de “estar junto”. A partir disso, eles não são muito high-tech, não interagem “tanto” com a tecnologia como intermediária, acabam não ligando muito para as experiências com o mundo “exterior”. Para você ter uma ideia: lá não pega 3G (nem 4G, nem EDGE, nem sinal de celular). Existe uma relação maior com a experiência presencial, com saber quem são as pessoas que estão a sua volta e aprender com isso. Parte disso vem do número limitado de pessoas que compõem a escola, e isso gera uma proximidade onde todos se conhecem (saber o nome de cada um é o básico, todos sabem). Muitos dos que estavam ali vinham perguntar para gente o quê estávamos fazendo ali, nos cumprimentavam, contavam suas histórias espontaneamente. A comunidade facilmente nos identificava como “estranhos” (nada de negativo nisso, mas como eles se conhecem muito bem, era nítido que éramos gente nova no pedaço). Mas isso também deixa transparente o sentido de autonomia criado no ambiente da escola: eles se sentem à vontade para nos interrogar, para questionar; não tem medo de se expor, de expor dúvidas ou interesses. O fato de ser um espaço multinacional (adolescentes vindos de 22 países diferentes) também enriquece muito o senso de respeito e o despertar de interesse pelo que o mundo tem de diferenças.
Quando chegamos à escola, uma das nossas primeiras interações foi com dois estudantes que tocavam violão em uma sala da casa que abriga a Brockwood Park School. Enquanto conversávamos, passou um adulto, batucou com eles no violão, e seguiu seu caminho (no dia seguinte descobriríamos que ele era o coordenador da escola). Esses dois estudantes nos deram uma boa introdução sobre o que eles sentem vivendo por lá: eles eram apaixonados por música, e preferiam compor as próprias canções do que tocar músicas populares das rádios, músicas que devem fazer sucesso com a maioria dos adolescentes em escolas mais tradicionais. Mais do que isso: um deles era homossexual e já havia passado por diversas escolas, tradicionais e alternativas, pela Inglaterra. Em todas se sentia deslocado, enfrentava tabus, piadas e bullying — tinha problemas de autoaceitação, autoconfiança, coisa que, para nós, era difícil de acreditar vendo a alegria e a desenvoltura com que tocava o violão e cantava pelos corredores da Brockwood.
Na cozinha da escola conhecemos a Soraia, uma portuguesa que após um ano como mature student (como eles chamam os estudantes mais velhos que estão em busca dos ensinamentos do Krishnamurti) foi contratada pela escola:
Eu venho de uma sociedade em que é o patrão e o empregado, o pai e o filho, é sempre uma hierarquia entre a pessoa que teme e a pessoa que manda. E aqui é mais igualitário, valorizamos mais a nós mesmos, mas sem desprezar a opinião do outro. Mais do que viver em comunidade é sentir que não há muita divisão entre quem é professor, diretor ou aluno, quem é mais adulto ou quem é mais novo. Quando tocamos a discutir assuntos que afetam a comunidade há uma valorização igual. Isso é visto através da confiança nas opiniões de crianças entre 13 e 14 anos, inserindo-as em processos que muitas vezes são exclusivos dos adultos, como a construção do currículo, das aulas… incluindo-as nas questões que envolvem toda a comunidade de Brockwood. E é legal ver o quanto isso interfere na maturidade com que elas a encaram a vida como um todo.
Esse ambiente, a escola reconhece, não é para qualquer um. Tanto que todo estudante, antes de ser aceito na Brockwood Park School, passa uma semana de experiência para ver se isso é o que ele realmente quer, e para a escola ver se ele realmente está disposto a se integrar e enriquecer essa comunidade.
Apesar de o contato com a natureza que a escola oferece ser algo que eles valorizam muito, existe também a necessidade de compartilhar os ensinamentos e atrair pessoas que se engajem. Algumas ações para incentivar trocas mais online é o blog: mantido pelos estudantes, o site mostra as atividades realizadas na escola. Recentemente a Fundação Krishnamurti fez uma campanha mostrando algumas citações inspiradoras e provocativas pelos metrôs de Londres. Existem também algumas publicações periódicas como boletins e newsletter.
Por fim, ao lado da escola, no mesmo sítio, fica o Centro Krishnamurti: uma espécie de retiro para adultos interessados em conhecer e se aprofundar na filosofia do fundador da escola. Esse retiro conta com quartos individuais, uma biblioteca com todas as publicações do filósofo, muitas traduzidas em diversos idiomas, e um acervo de vídeo e áudio de atividades promovidas por ele.
E caso você não esteja mais na idade de estudar no ensino médio, existem outras formas de vivenciar o que acontece na escola: interessados na filosofia de Krishnamurti podem colaborar com o dia-dia da escola como mature student (como a Soraia fez) ou guest helper (alguém que ajuda no manutenção da escola, cozinhando, cuidando da terra e do que é plantado e colhido no sítio etc.).
Uma escola e a filosofia do Krishnamurti
Em uma conversa com Gopal, o coordenador que vimos batucar no violão com estudantes, aprendemos um pouco sobre o papel dos professores (e da coordenação) na Brockwood. Ele disse que a escola não faz perguntas cujas respostas eles já se sabe; e, se fazem, é porque o que interessa não é a resposta, mas sim os porquês de cada uma das respostas, de cada um dos estudantes. Em um exemplo simples ele conta que caso ele venha a perguntar a um estudante, digamos, quantos lados tem um cubo, pouco importaria ouvir como resposta o seis (talvez a resposta mais tradicional), o dois (o de dentro e o de fora), três (os lados visíveis caso o objeto esteja na mesa), ou qualquer outra possibilidade. O interessante, ele reafirma, é entender como cada um chega a sua resposta. Apesar da simplicidade do exemplo, a mesma lógica ajuda a explicar como a escola se sustenta dando tanta autonomia para os estudantes: caso um estudante decida que não quer estudar, isso é colocado em segundo plano e o foco das conversas passa a ser entender o porquê dessa decisão — e nesse processo normalmente se encontra algo do interesse do estudante, algo para ser reformulado no ambiente, alguma coisa que o engaje novamente no aprendizado.
Um amigo, logo depois que visitamos a escola, nos perguntou se existe uma coordenação ou se tudo é criado a partir das interações de quem lá está. Se essa é sua dúvida, tire o “ou” da sua pergunta. Existe um coordenador e tudo é criado de a partir das interações. O papel do coordenador é refletir e aprender com as experiências de Brockwood, assim como esse é também o papel dos estudantes. Para Krishnamurti educação não tem começo, meio e fim, então o coordenador aprende com o que acontece ali e vai cuidando para que o espaço (no sentido literal e figurativo) exista: para que as conversas continuem acontecendo e uns continuem aprendendo com os outros. A direção para onde vão, e o que vão fazer pouco tem a ver com o papel do coordenador. O que diferencia o coordenador é apenas um domínio maior da filosofia do Krishnamurti – e acreditando nisso, é só confiar no processo.